segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Já Não Estou Aí

Um detalhe do filme Ainda Estou Aqui me colocou a pensar: a participação da trabalhadora doméstica Zezé.

As histórias da ditadura são quase sempre focadas em pessoas de classe média. É claro que a família Paiva sofreu muito, mas essas histórias já as conhecemos todas.

A Zezé vivia num quartinho de empregada dentro da casa dos Paiva. Isso chega a ser chocante: a estrutura social refletia ainda a escravidão: havia ali uma casa-grande e uma senzalinha.

A ditadura, não é óbvio para muitos, foi um movimento para impedir a modernização do Brasil. As reformas de base visavam preparar o país, que estava se urbanizando rapidamente, para a modernidade.

Esse freio provocou o crescimento desordenado das grandes cidades e jogou milhões de brasileiros na miséria urbana, sem moradia e sem educação. Mas além da violência por inação, a ditadura incentivou a violência policial nas periferias (Cidade de Deus é provavelmente o melhor filme sobre a ditadura) e deslocou milhares de nordestinos para ocupar as margens da rodovia transamazônica e lá os abandonou à própria sorte.

Eu não ignoro o sofrimento dos torturados, dos assassinados, e de suas famílias, mas a ditadura roubou o futuro de milhões de pessoas e essa história não é contada.

Essa classe média que se compadece com o sofrimento dos Paiva, faz alguma coisa para tornar o país mais justo? Um morador da periferia vive a violência todos os dias. Uma pessoa morta há 50 anos não vai comovê-lo. A polícia continua torturando e matando e a classe média aplaude.

A muito custo, os governos de esquerda conseguem umas vagas na universidade para negros, um dinheirinho para aliviar a fome dos mais necessitados, e reconhecer as uniões homoafetivas. Mudar realmente a matriz social do país, até hoje com marcas da escravidão, não inspira da mesma forma que a Comissão da Verdade inspira. No fundo, estamos só maquiando um porco.

Se formos a Brasília, poderemos ver faxineiras trocando o uniforme sob viadutos e um metrô que chega a centenas de metros do aeroporto e subitamente muda de direção. Nos ministérios não há lugar para a faxineira terceirizada trocar de roupa (quem dirá tomar um banho) e o transporte de massa não vai até o aeroporto, porque, obviamente, os trabalhadores não precisam ir até lá (sequer os que lá trabalham, aparentemente). A infraestrutura é pensada para separar.

Até hoje, apartamentos são construídos com o quarto da empregada.

Por não discutirmos essas coisas, temos uma classe popular que almeja tornar-se classe média e uma classe média que, em grande parte, quer manter a distância. Já ninguém imagina um país diferente.

Afinal, o que o filme agrega? Ele tem boas atuações e ele conta uma história interessante, mas ele não agrega nada à discussão e, no fundo, prega para convertidos. Talvez o Walter Salles tenha colocado a cena da Zezé em seu quartinho para provocar alguma reflexão. Pelo menos comigo, funcionou.

Ainda Estou Aqui recebeu três indicações ao Oscar. Sim, é bom ter um filme nacional reconhecido no mundo, mas nós precisamos dessa confirmação para saber que ele é bom? Nós realmente dependemos da confirmação da indústria que apoia a superestrutura e que convence nossos compatriotas de que lá é o centro do mundo e que aqui somos apenas coadjuvantes na periferia do mundo deles?

Alimentar esse auê sobre o Oscar, temo que apenas alimente a máquina de ilusões que sustenta nosso atraso através do filtro de histórias que devem ou não ser contadas.

E que fim levou a Zezé? Os filhos dela terão conseguido estudar num CIEP (sim, veja bem, fomos capazes de acabar com esse projeto mesmo em tempos democráticos)?

Um comentário:

  1. Um indício forte dessa comoção seletiva foi a enxurrada de críticas ao vídeo do Chavoso da USP, que levanta essas mesmas questões.

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