segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Desapego material

Eu acho fantástica a maneira como o nosso sistema educacional forma pessoas desapegadas da realidade material. O que acontece no mundo real não afeta a maneira como as pessoas formam suas convicções políticas, econômicas e cotidianas.

As eleições deste ano seguem o padrão exasperador de ignorância militante. De tanto escutar falar mal do Bolsa Família e sobre como ela é culpada pela carga tributária, resolvi partir para minha atividade favorita: conferir os números.

Conforme o Ministério do Desenvolvimento Social, os benefícios variam de R$22 a R$200 para famílias com renda de até R$140 por pessoa. Considerando que o salário mínimo é de R$510, já vai ser dificil me convencer de que alguém vai deixar de trabalhar por isso. Lendo um pouco mais, descobri que o maior benefício seria concedido a uma família com pelo menos 3 crianças e 2 adolescentes. São 6 pessoas, no mínimo, porque se não tivessem mãe, os menores estariam numa instituição (ou na rua). Então, são R$33 por pessoa por mês.

Se uma criança passar toda a vida ganhando o benefício, pode esperar ganhar R$3.960 até os 15 anos e mais R$972 até os 17. São R$22 por mês antes dos 15 anos de idade e R$33 até os 17.

Segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), a carga tributária para uma família que ganha até dois salários mínimos é de 48,9%. Então, uma criança que tenha passado toda a vida (204 meses) ganhando o benefício e, ao completar 17 anos, conseguir um trabalho com carteira assinada, pagará de volta o que recebeu em 19 meses.

Faixa de RendaCarga Tributária
Até 2 Salários Mínimos48,9%
De 2 a 5 Salários Mínimos35,9%
De 5 a 10 Salários Mínimos31,8%
De 10 a 15 Salários Mínimos30,5%
De 15 a 20 Salários Mínimos28,5%
De 20 a 30 Salários Mínimos28,7%
Acima de 30 Salários Mínimos26,%


Pensando bem, nem precisa ter carteira assinada, porque vai pagar apenas impostos sobre o consumo, já que não vai ter renda suficiente para pagar imposto de renda.

Enquanto isso, o orçamento anual da UFRGS é de R$874.369.261,58. São 42.054 alunos e, portanto, o custo anual de cada um é de R$20.791,58.

Um curso de 5 anos custa, então, R$103.957,90. Digamos que o recém-formado seja muito sortudo e consiga um emprego com salário de R$10.000,00. Segundo o IPEA, a carga tributária dele será de 28,7%. Serão 36 meses até que ele consiga pagar em impostos o que recebeu. Acho que R$3.000 ainda seria uma expectativa otimista de salário médio para um recém-formado e com isso seriam precisos 108 meses para retornar aos cofres públicos o custo do curso (sua carga tributária seria de 31,8%).

Talvez a universidade, mesmo sendo tão cara, esteja nos falhando, porque escuto muita gente que melhorou de vida graças a ela reclamar do Bolsa Família com argumentos falaciosos. Não sei bem se é falta de sensibilidade social ou falta de intimidade com os números e a lógica.

De qualquer forma, não excluo a possibilidade de que existam argumentos inteligentes contra os programas sociais vigentes e que, a qualquer momento, alguém sacará o trunfo da manga.

11 comentários:

  1. Fazer as contas é muito trabalhoso, e ainda faz com que as nossas verdades sagradas sejam contestadas. Mas eu ainda acho que, para a maior parte das pessoas, é simples preconceito contra pobre, além do terrível medo de parecer otário por defender uma causa que não te faz parecer fodão.

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  2. Vem ca', nao estao errados aqueles numeros da carga tributaria?
    Ta dizendo que se o salario e' 10K, o imposto e' 28.7%.
    Mas se o salario e' 3K, o imposto e' 31.8%.
    E' real isso ou engano? Nao era pra ser o contrario (quem ganha mais paga mais imposto)?

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  3. O Brasil, ao contrário dos países desenvolvidos, tira a maior parte de sua receita de tributos indiretos e cumulativos, que oneram mais os investimentos, a produção, o trabalhador e os mais pobres, pois tem uma alta carga tributária sobre o consumo – mais de metade da carga provém de tributos que incidem sobre bens e serviços – e uma baixa tributação sobre a renda – 28% da arrecadação tributária.

    O resultado é uma carga tributária regressiva, significando que o Estado brasileiro é financiado, em grade parte, pelas classes de menor poder aquisitivo e pelos trabalhadores, com a população de baixa renda suportando uma elevada tributação indireta.

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  4. É incrível, mas quem ganha menos gasta uma parcela maior da renda em impostos. Até adicionei uma tabela para ficar mais claro.

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  5. Comparação das bases tributárias de alguns países (números aproximados):

    * Canadá
    Renda: 50%
    Patrimônio: 10%
    Folha: 15%
    Consumo: 25%

    * EUA
    Renda: 50%
    Patrimônio: 10%
    Folha: 25%
    Consumo: 15%

    * Reino Unido
    Renda: 40%
    Patrimônio: 12%
    Folha: 20%
    Consumo: 28%

    * Coreia
    Renda: 30%
    Patrimônio: 15%
    Folha: 22%
    Consumo: 33%

    * Brasil
    Renda: 25%
    Patrimônio: 5%
    Folha: 20%
    Consumo: 50%

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  6. Belíssimo post. O que faz com que quem tem menos pague mais no Brasil é justamente o excesso de tributos sobre o consumo em relação aos tributos sobre renda e patrimônio. Relação que se inverte em qq país decente, como mostrou o comentarista. Só discordo da tabela, que calculo que seja muito mais discrepante que a mostrada. Somando IPTU, IPVA,ICMS,IPI, IRPF, Previdência, calculo minha carga pessoal em um ano como sendo de cerca de 60%.

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  7. Não sei como o IPEA chegou a esses números, mas entendo que a carga tributária pode variar bastante, conforme o estilo de vida das pessoas. Eu poderia, mantendo a mesma renda, mudar-me para um bairro mais barato e pagar menos IPTU, por exemplo. Não ter um carro também diminui bastante as oportunidades de pagar impostos. E tem coisas que as pessoas tratam como imposto, mas que não são, como a contribuição previdenciária. E outras que não contabilizamos, como o custo de ter grades e cercas elétricas (este é um imposto que eu adoraria me livrar).

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  8. A Receita oferece um simulador de alíquota efetiva de IR no seu site:

    http://www.receita.fazenda.gov.br/aplicacoes/atrjo/simulador/SimIRPFAnual2010.htm

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  9. Como alguem que ganha acima de 30 Salarios Minimos vai pagar 26% se "apenas" o IRPF já é 27,5%?

    Do que sobrar, o "rico" ainda paga uns 40% no consumo (ICMS, COFINS, IPI, IPTU, etc)

    Entao quem ganha mais de 30 salários paga quase 70% de imposto e isso é fácil de calcular.

    O IPEA é vinculado a previdencia e tem uma visão ideológica socialista.

    Essa tabela é totalmente furada.

    Outra furada é falar que nos US o imposto sobre a renda é 50%, eu paguei imposto de renda lá e era 25%.

    Além do mais, essa comparação entre países é inócua. O Brasil é subdesenvolvido por questões culturais, não tem muito a ver com imposto.

    Brasileiro não valoriza trabalho, poupança, honestidade, pontualidade, empreendedorismo, etc

    Alias, Tiririca será o deputado mais votado do Brasil. Abraço

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  10. Anônimo, a alíquota de 27,5% não começa no primeiro real; ela só vale para a renda acima de R$3.582,00. E tem as deduções, como o desconto simplificado e a contribuição previdenciária.

    Tens razão sobre os impostos sobre o consumo e este é o ponto crucial. Quem ganha um salário mínimo tem que gastar todo o seu salário para manter-se; quem ganha 30 salários, pode guardar bastante (e ainda ter um belo lucro em renda fixa, graças à taxa de juros mais alta do mundo).

    Sobre o caráter do brasileiro, temos defeitos, sim. Mas trabalhamos muito mais que os europeus e até que os americanos. Por sinal, se os gringos fossem tão poupadores, não estariam na crise que estão agora.

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  11. Anônimo, sobre o imposto de renda nos estêites, o comentário do Flávio refere-se à participação dele no total arrecadado pelo governo. Por sinal, a maior alíquota do governo federal é de 35% e existem ainda os impostos de renda estaduais.

    Confundiste os conceitos e essa é a questão central do artigo: as pessoas não olham os números, não sabem do que estão falando e então tiram conclusões absurdas baseadas em idéias pré-concebidas.

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